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Pereira, Luís Filipe. A tela do mundo. Capa: pintura de Laura Cesana. Portugal: DG Edições, 2008.
Uma
obra de arte cinzelada em palavras. Assim é 'A tela do mundo' de Luís
Filipe Pereira, poeta português de currículo invejável e rara
sensibilidade poética, um poeta d'além-mar cuja obra tive o privilégio
de conhecer.
O livro nasce de três axiomas: a
força vivífica que se reflete da mesma origem, mas de modos
diferenciados nas obras plásticas e literárias, abraçando a filosofia
de Maurice Merleau-Ponty e Martin Heidegger, frente ao argumento
poético de Antonio Ramos Rosa. Aliás, é em seu blog
que Lippe ecoa o poeta português e lhe presta tributo, evocando em seu
subtítulo um dos livros da obra ramos-rosiana: 'Estou vivo e escrevo
sol'.
No entanto, nada disso traz pedantismos,
jargões ou linguagens específicas e cifradas, mas apenas premissas
teóricas sobre as quais repousa sua obra, e que levam os versos de
Filipe a profundezas inimagináveis.
Lippe
mistura em sua paleta, entre outros tons e sons, Paul Cézanne, Garcia
Lorca, Juan Miró, Júlio Resende, Paul Klee, Magritte, Rothko, Antonio
Ramos Rosa, Marc Chagall, Van Gogh, Frida Kahlo, Franz Marc e Edward
Hopper, num desfilar de cores e intensidades.
Em
sua tela é possível decifrar o motivo pelo qual a poesia se faz gênero
para poucos. É que são realmente ínfimos aqueles dispostos e capazes de
um mergulho tão fundo na existência - poucos são os eleitos para um voo
tão alto ou têm conteúdo, força e conhecimento suficientes para gravar
e perenizar o mundo, essa passagem.
O poeta parte do
'instante sempre de novo inacabado' e na sua
'paleta do tempo', inicia do vermelho e segue entre diversas imagens e cores para findar no próprio começo. Seu poema está
'no espaço não-capturado pela razão' e se colore de negro e branco para dizer, sempre e novamente, na
'lenta lentidão/de tudo o que não diz'.
Luís
está no pólo oposto da ausência de sentido que sinaliza a arte poética
pós-contemporânea, mas também não se restringe a apreender e retratar o
que se vê. Luís busca outra ausência, procura o que não se vê, o que
não há, o que é anterior à existência e à própria luz, e encontra a
força das palavras e sua correspondência nos matizes de luminescência
da cor. Empreende outra 'pedagogia do olhar' tal como proposto, desse
lado do oceano, pelo mestre Affonso Romano em seu livro 'Desconstruir
Duchamp'.
Para Lippe, as palavras são os tons e semitons
de nossa própria passagem, de nosso percurso sob as infindas
combinações e incidências de luz e sombra e, desta forma, numa
percepção estética que caminha para além da luz, seus poemas são
repletos de sentido e referências filosóficas, semióticas,
metalinguísticas e artísticas. Captura-se a luz que se refrata em cor,
a luz que se filtra em nós e se transforma em palavras, até que a
ausência de luz desça a cortina da noite sobre o texto e se transforme em nova página em branco.
E
assim como luz e sombra, vida e morte, são cíclicos binários e
alternados, Luís Filipe germina, fecunda e termina sua tela do mundo
com a reabertura eterna:
'de novo o branco
da página há de conjugar-me', 'de novo o branco da tela há-de
colorir-me', 'pintura a pintura', 'estrofe a estrofe' (em 'epigrama de um começo')
Após
ouvir os sons, o ritmo, a música da palavra - essa arte entretecida em
negro e branco - e absorvê-la em silêncio, também eu busco a
continuação, me perscruto num universo de emergências e luz,
inesgotável de tinta e palavra.
Quem disse que o verso morreu?
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