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Queridos amigos,

Engraçado como procuro viagens de férias e perco um pouco o ar, aflita na promessa desse lugar de paz e descontração em praias desertas do Caribe ou na placidez do Sena. Mais que o prazer de fugir ou o deleite de espraiar os domínios terra afora, talvez o que me mova enquanto folheio o caderno de turismo seja essa saudade do silêncio numa cidade sitiada de relógios e poeira, talvez seja a saudade de mim mesma e da minha própria voz, abafada entre compromissos e exigências.

Mas não sinto falta do tempo de criança, não é isso.  Crianças não possuem o dom da escolha. Também não digo que seja vontade de abandonar, como louca, a razão das coisas. Loucos precisam acertar contas com as vozes que sufocam seus silêncios.

Me bastaria apenas banir os planejamentos e agendas para o arquivo morto de 2008 e assim abrir espaço para escutar a névoa que se deita com a tarde, descansar a vista na conversa das estrelas, catar pirilampos na noite, pescar caranguejos na aurora. Me bastaria apenas acordar de madrugada para coar a paz do café e tecer as manhãs de demora e poesia.

Esse recesso ainda chega. Um dia chega. Enquanto não vem, continuo folheando os cadernos de turismo.

 Rasif - Marcelino arrebenta
rasif
- Freire, Marcelino. Rasif: mar que arrebenta. Gravuras Manu Maltez. Rio de Janeiro: Record, 2008.

Rasif não precisa de adaptação para o teatro. Ele já é o texto teatral pronto e acabado na voz dramatúrgica impetuosa de Marcelino Freire.

Os cortes de ritmo se revelam pelas frases abruptas, numa arrebentação de idéias o texto vai se montando no mosaico das orações que formamos inconscientemente e que raro transferimos in natura para o papel. O leitor pensa junto com o personagem-narrador, acompanhando seu raciocínio íntimo e intenso.

Debaixo dos olhos de Marcelino, desfilam os tipos sociais que encontramos em qualquer cidade brasileira e, mesmo com o sotaque regional bem marcado, há um quê inequívoco de brasilidade que nos identifica e conforta. Manu Maltez complementa o texto com suas gravuras de mar revolto, onde a espuma das ondas sugere pesadelos que afundamos em nossas águas mais turvas.

Há quem tenha sublinhado o conto do papai Noel como o melhor dos contos de Marcelino neste seu Rasif. Sim, pode ser bastante criativo, na medida em que utiliza figuras infantis para traduzir desejos impossíveis e revoltados de uma classe excitada pelo consumo. Sinto, no entanto, dizer que prefiro outras histórias.

Outros contos como 'Iemanjá', o pedido encarecido e melancólico de perdão à deusa dos mares, por toda a imundície que se despeja em seus domínios, ou como 'Da Paz', que exibe sem medo a hipocrisia suprema das passeatas sem resultado, das manifestações inócuas de um povo acuado e sem disposição para exigir o que merece. Ou, ainda, 'Roupa suja', a satirização de uma Cinderela à brasileira, onde a funcionária da lavanderia chega à gerência pelas graças de um homem rico e belo, e transmite as receitas impagáveis de seus ardis e de sua audácia feminina para a amiga de menos sorte.

Enfim, o ritmo de Marcelino é divertido, frenético, único, e suas histórias trazem à tona temas complexos que geralmente evitamos.

Temas graves que tocam o desgaste do 'politicamente correto', temas que, por suas rotulações perversas, nos acovardam.

Esse é, pois, o arsenal do escritor diante desse nosso 'mar que arrebenta' diariamente, do autor que não busca a superfície, o lugar-comum, a repetição, mas, ao contrário, resgata das profundezas os nossos dramas mais silenciados, as irresignações mais inconfessáveis.

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Rakushisha

- Lisboa, Adriana. Rakushisha. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

Um livro semelhante a um origami. Belo, silencioso, delicado, milenar. Assim é Rakushisha, o quarto romance de Adriana Lisboa, com suas dobras perfeitas, as palavras tecidas na suavidade de um papel de arroz.

Rakushisha existe, de verdade. Uma construção rústica do outro lado do nosso mundo, nos arredores de Kyoto, no Japão, num tempo tão contraposto ao nosso. É a Cabana dos Caquis Caídos, como Mukai Kyorai a batizou após a chuva forte que dizimou sua produção de caquis, tudo perdido na breve e furiosa tempestade.

Adriana Lisboa nos conta, num mosaico de tempo e narradores, a viagem de Celina e Haruki, num recorte de seus tempos, de suas vidas. Desde o inusitado encontro dos dois no metrô do Rio de Janeiro até o mergulho nas entranhas daquela terra tão diferente, mas que em sua misteriosa brandura, permite a compreensão do que lhes é mais íntimo, do que lhes era mais caro.

"Você me faz falta. Você me fez falta antes que eu te conhecesse. Você me faz falta agora."

Assim como Kyorai perde sua safra de caquis e, a despeito disso, sua cabana serve de abrigo para que o samurai Bashô pudesse escrever os haicais perfeitos de 'Saga Nikki, o diário de Saga', da mesma forma Celina e Haruki acertam contas com suas próprias perdas, e redescobrem novas formas de caminhar, de seguir viagem.

Porém, a saga de Celina e Haruki não é externa, apenas. Assim como a Odisséia, de Homero, em que o protagonista encontra forças dentro de si mesmo para abandonar o conforto de seu estado de fuga e enfrentar as incertezas do retorno, Celina também viaja sem expectativas de chegada, sem previsões, esperas ou planejamentos.

Ambos os protagonistas viviam outras realidades escondidas por baixo da pele, por trás de todo som. Precisavam sintonizar a realidade com os sussurros do inconsciente e é assim, aos poucos, que buscam uma cura para suas dores. Sabiam que a cura seria difícil, árdua e lenta, pois o consolo sempre devagar, nos intervalos, lenitivos de tempo que permitiam apenas continuar seguindo.

um beijo,
 
Paula